Jogos de futebol com estádios vazios e automóveis esportivos têm algo em comum. Tanto os atletas em campo como os motoristas de diversos veículos ouvem sons virtuais, reproduzidos de forma artificial. Por causa da pandemia, os primeiros escutam incentivos de uma torcida que não está nas arquibancadas. Os segundos recebem sons fortes que não estão emanando do motor.
No retorno dos jogos de futebol, jogadores entraram em campo em estádios sem plateia. O “12º jogador”, que empurra o time para frente e tenta segurar o adversário, por enquanto tem de ficar em casa.
Para contornar a situação e manter o incentivo aos atletas no campo, clubes instituíram torcidas virtuais. Gravações reproduzidas pelo sistema de som dos estádios é a nova moda. Embora seja uma solução inusitada para quem está acostumado com futebol “normal”, não deve causar tanta surpresa para donos de carros esportivos. Há muito tempo, eles são “incentivados” por um ronco que não é exatamente o do motor.
Em automóveis, o som artificial veio para suprir a diminuição de ruído natural. No passado, com regras menos restritivas em relação à poluição sonora e ambiental, os carros tinham motores de maior cilindrada. E que faziam barulho sem a menor cerimônia.
Normas mais severas em relação a emissões, consumo e ruídos resultaram em diminuição de tamanho de motores. Esse processo é conhecido como downsizing. Por isso, a engenharia criou soluções que compensassem os ouvidos.
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Som na caixa
Alguns automóveis reforçam o som do motor pelos alto-falantes. Nesse caso, quando o motorista pisa mais fundo no acelerador, o som interno aumenta. Esse sistema é utilizado em vários veículos, a exemplo do Honda Civic Si 2020. Não bastassem os 208 cv do cupê esportivo, o motor 1.5 turbo conta com a ajuda do sistema sonoro do carro. Batizada de Active Sound Control (controle ativo de som), a tecnologia amplifica o ronco do motor durante uma condução mais agressiva.
Uma vantagem do som reforçado artificialmente no interior do veículo é que não há elevação do barulho do lado de fora do carro, e portanto o automóvel não excede o limite legal de ruído.
A Volkswagen adotou outra tecnologia
Carros como Polo e Virtus GTS dispõem de um sistema que emula o som do motor por meio de uma caixa de ressonância localizada na base do para-brisa. Em função de dados como velocidade, rotação e carga do motor, ela gera uma frequência que, ao ser enviada ao para-brisa, faz o vidro vibrar como se fosse uma membrana, e disso resulta um ruído direcionado aos ocupantes da cabine.
O sistema é ativado quando se seleciona o modo esportivo no perfil de condução, na tela multimídia. Além da dupla, a montadora utiliza esse mecanismo no sedã esportivo Jetta GLI e no híbrido Golf GTE.
Até esportivos como Audi R8 usam artifícios
A Audi, que pertence ao Grupo Volkswagen, adota a mesma tecnologia em alguns de seus carros, mas também dispõe de outros sistemas para obter o que chama de “assinatura sonora”. De acordo com a marca alemã, essa área de desenvolvimento evoluiu porque, além de desempenho, os clientes buscam “experiência sonora”.
A empresa sediada em Ingolstadt criou três modos de reproduzir sons. Além do dispositivo que utiliza a ressonância gerada na base do para-brisa, para a linha de esportivos mais baratos (caso do S3 e do cupê TTS), há outras duas soluções. Esportivos equipados com motores mais potentes adotam sons reforçados por meio de válvulas instaladas na ponta do escape. Elas abrem e fecham conforme a carga e rotação do motor. O dispositivo está presente nos motores de cinco cilindros e nos V6, V8 e V10. O som pode ser controlado por um botão no console ou no volante.
Outro método da empresa é uma espécie de alto-falante também instalado no sistema de escapamento. Segundo o instrutor técnico de treinamento da Audi, João Santos, esse mecanismo surgiu originalmente para produzir sons em automóveis com motores a diesel, “mais difíceis de gerar sons (agradáveis)”. Trata-se de uma caixa de som circular localizada no sistema de descarga do veículo. Alimentada por eletricidade, ela gera vibração com a passagem de gases, e altera o barulho original. Após os bons resultados obtidos em modelos a diesel, passou a ser oferecido também em carros a gasolina, até mesmo como item opcional.
A tendência de reforçar o ronco atinge até esportivos historicamente reconhecidos pelo forte ruído natural. É o caso do típico som “borbulhante” do Ford Mustang. No novo 5.0 V8 do modelo, é possível selecionar quatro níveis de ruído no menu do painel de instrumentos, que vão do modo silencioso ao “pista”. Como nos carros de motores de maior cilindrada da Audi, a alteração é feita por uma válvula localizada no escapamento.
Estímulo
Para a professora titular do departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP, Martha Hübner, “os estímulos do ambiente criam o comportamento”. De acordo com ela, o ambiente (no caso o som) gera uma resposta e uma consequência. Assim, o motorista tende a associar o ronco do motor com velocidade, e pode acelerar mais. “O som tem poder de evocar comportamentos”, diz.
O atacante Willian, do Palmeiras, concorda. Embora afirme que o som artificial dos estádios não seja capaz de substituir a “mesma atmosfera” criada com a presença dos torcedores, o atleta diz que a solução “é melhor do que se não tivesse som nenhum”. “Isso mexe conosco dentro de campo. Foi uma alternativa legal.”
O ex-piloto Roberto Manzini, que atualmente dirige a escola de pilotagem que leva seu nome, afirma que o som “leva à euforia”. De acordo com ele, o ruído provocado pelo motor (real ou não) pode levar o motorista a ultrapassar um limite ao qual ele não está preparado.
BMW chama compositor para desenvolver sons
Reforçar o som de automóvel que já faz barulho é uma coisa. Mas como criar sons para carros que nasceram silenciosos? Ao contrário de motores a combustão, que geram ruído, propulsores elétricos funcionam praticamente sem emitir nenhum ronco. Afinal, neles há menos peças móveis, e não há a explosão controlada, responsável pela movimentação dos cilindros.
Mas nem sempre o silêncio total é bem-vindo. Em primeiro lugar, há a questão da segurança: pedestres (com deficiência visual ou não) podem não perceber a chegada de veículos elétricos, e correm riscos ao atravessar a rua. Alguns países criaram legislação que obriga a produção de algum ruído, ao menos quando os automóveis elétricos estão em baixa velocidade, em perímetro urbano, para alertar pedestres.
Outra questão está associada ao desejo de ouvir algum som. “O som sempre teve papel emocional importante em nossos veículos”, afirma o vice-presidente sênior da BMW Jens Thiemer. Tanto isso é verdade que a Fórmula 1 perdeu parte do encanto quando adotou propulsão híbrida, há seis anos.
O tema está ganhando tanta relevância que a BMW convidou o compositor alemão Hans Zimmer para ajudar. Sua missão foi desenvolver os ruídos gerados pelo conceito elétrico i4, juntamente com o “designer de som” italiano Renzo Vitale, que, além de compositor, é pianista e engenheiro acústico. Vitale trabalha para a montadora de Munique desde 2015, no núcleo chamado de Iconicsounds Electric.
Para o cupê, a dupla criou sons tanto para a abertura de portas como para o motor de 530 cv. O propulsor passa a emitir um zunido sutil assim que o botão de partida é acionado. De acordo com Zimmer, o objetivo do trabalho é “levar o motorista a um outro nível de conexão” com os veículos elétricos da marca, por meio de tons e sons. Vitale afirma que o som concebido para os veículos gera emoções positivas.
No i4, pode-se escolher entre dois modos sonoros: Core (normal) e Sport (mais intenso). O resultado do trabalho dos músicos estará também nos outros modelos elétricos e híbridos da marca.
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