sábado, 2 de novembro de 2019

Motoristas brasileiros, segundo Camus: alegres loucos ou frios sádicos

Albert Camus (1913-1960), francês que foi Premio Nobel de Literatura, esteve no Brasil na década de 50 e suas impressões de viagem fizeram parte de seu livro “Camus, o Viajante”. O francês esteve em Porto Alegre, São Paulo, Rio, Salvador e Recife. Na época, o país ainda estava engatinhando em termos de trânsito, automóveis e motoristas (sequer tínhamos uma indústria automobilística).

Apesar disso, ele relata suas impressões sobre nossas ruas: “Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar”. Dá para imaginar o tamanho do seu espanto se tivesse oportunidade de repetir a visita em tempos mais recentes.

Camus de certa forma profetizava que o Brasil viria a conquistar o desonroso título de país incluído entre os campeões mundiais de acidentes e mortes no trânsito. Que nem código de trânsito, projeto da ONU para redução de mortos na década, Lei Seca ou campanhas de entidades públicas ou civis atingiram o propósito de aplacar essa violência rodoviária.

O escritor francês nem poderia imaginar que o transito presenciado por ele não representava a mais pálida imagem do que viriam a se transformar nossas ruas e rodovias. Nem que, apesar do trânsito caótico e mortífero dos nossos dias, ainda surgiria um presidente querendo eliminar radares e afrouxar o sistema de punição aos motoristas.

 Estilo Carlota Joaquina

Camus acertou na mosca ao comentar que o objetivo do motorista brasileiro é “chegar primeiro, custe o que custar”. Exatamente a mesma conclusão a que chegou o antropólogo Roberto da Matta mais de meio século depois. Ele tem uma explicação para o complicado comportamento do brasileiro ao volante em seu livro Fé em Deus e Pé na Tábua, da Editora Rocco.

Ele diz que nossos motoristas abominam a igualdade no trânsito e que não suportam se comportar como iguais nos espaços públicos. “Esse complexo de superioridade – diz Da Matta – tem raízes na própria história do Brasil”. E afirma que nossos motoristas “dirigem no melhor estilo Carlota Joaquina”, alusão ao protocolo real que obrigava, na época do império, que todos parassem para reverenciar a corte quando esta passava pelas ruas.

Querem hierarquizar as ruas e lamentam que “não dá para instalar sinalização semafórica especial para quem é rico”. Querem “entrar na frente e tentar encontrar espaços onde não existem” e que obedecer a lei é sintoma de inferioridade. Segundo Da Matta, nosso terrível comportamento nas ruas é fruto de uma sociedade que ainda não aprendeu a ser igualitária e a se libertar de seus traços aristocráticos.

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O antropólogo diz que o brasileiro normal dirige, em geral, com estilo agressivo. Temos impaciência em ficar ao lado do carro daquele sujeito que, para a gente, é um atrapalhador porque dirige devagar demais. Enquanto isso, ele olha para você e pensa “Aquele cara é um débil mental porque está querendo correr”.

Motoristas: iguais só na teoria

No nosso trânsito, vale a teoria de que são todos iguais perante a lei, mas “eu sou mais igual que os outros….” e as ruas viram palco de disputas entre todos. Ônibus fecha automóvel, taxista é mais importante que particular, motoqueiro despreza o ciclista e este o pedestre.

Motorista entra na vaga de frente antes do outro que vinha de ré. Não dá passagem. É “ishperto” e foge do congestionamento pelo acostamento. ”Costura” os demais ziguezagueando entre faixas. É egoísta ao volante: pragueja contra o trânsito mas para em fila tripla pois tem que deixar seu filho e-xa-ta-men-te defronte ao portão da escola. Reclama contra o governo que “não faz nada para melhorar o trânsito” mas xinga o policial que o adverte por estar bloqueando o cruzamento.

O motorista não vai respeitar o pedestre na faixa enquanto se julgar mais importante que ele. Não teremos paz no trânsito enquanto cada motorista se julgar um ser superior, desrespeitar as leis e dirigir no melhor estilo “Carlota Joaquina”.

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